Nessa segunda parte, irei descrever minha experiência com o álbum “Grand Declaration of War”.
Para uma melhor compreensão, sugiro que você leia a primeira parte, onde trato do EP “Wolf’s Lair Abyss” (além de um breve histórico de como conheci a banda).
Se você leu o outro texto, deve lembrar que afirmei que “Grand Declaration of War” talvez seja o mais odiado na discografia da banda, porém não descarto a possibilidade de que muitos não compreenderam a proposta do disco. Esse texto tenta explicar a minha percepção sobre o conceito por trás dele… Depois de ler, ouça o disco novamente e deixe um comentário.
PARTE II
Logo que o álbum começa, é possível perceber o riff final de “Symbols of Bloodswords” sendo executado num fade-in, remetendo diretamente ao EP “Wolf’s Lair Abyss” que terminava com o vocalista Maniac gritando “one war remains, war of everything” (traduzido como “uma guerra permanece, guerra contra tudo”).
Em seguida, citando a frase em latim “tanto magis infra se cecidit, quanto magis se contra gloriam, sui conditoris erexit” que, de acordo com Russell (1984) em seu livro “Lucifer: The Devil in the Middle Ages”, pode ser traduzido como “quanto mais ele se rebelou contra a glória do Criador, mais ele caiu”. Com esse link é possível compreender que se trata de uma continuidade da obra anterior, retomando o conceito de guerra.
Fiquei surpreso ao ouvir o álbum pela primeira vez, assim que adquiri uma versão especial no formato digipack, em meados de 2001, na loja Hard Temple em Curitiba/PR.
No verso do CD as músicas estão divididas nas partes II e III, ficando evidente que se trata de uma sequência. Esse conceito fez mais sentido apenas 18 anos depois, no momento em que ouvi o álbum em picture disc: no lado A do LP está escrito “Part II”, enquanto no lado B está escrito “Part III”. A troca de um lado para o outro do disco (e a pausa dessa ação) reforça esse conceito.
Embora o EP “Wolf’s Lair Abyss” flerte com o pensamento de Friedrich Nietzsche, é em “Grand Declaration of War” que isso se torna mais explícito, a começar pelo título: o filósofo dizia que seu livro “Crepúsculo dos ídolos, ou como filosofar com o martelo” é “uma grande declaração de guerra”.
A faixa título – primeira música do disco – é uma espécie de introdução com mais de 4 minutos, onde a bateria militar nos convoca a participar de uma batalha contra o sagrado.
“In the Lies Where upon You Lay” inicia com blast beats e guitarras gélidas, seguida de uma espécie de discurso do vocalista Maniac contra o cristianismo, nos incentivando a se juntar a eles nesse confronto.
“View from Nihil (Part I)” é, certamente, o destaque do álbum. Após um minuto de introdução – onde Maniac proclama frases de ódio numa espécie de megafone, sobrepondo a instrumentação que remete a uma marcha militar –, há uma breve pausa que é logo interrompida com uma música extremamente rápida, regada a padrões rítmicos não convencionais, tempos complexos e guitarras esquizofrênicas.
O blast beat frenético, por vezes dobrando a caixa da bateria para acompanhar as frases da guitarra, faz com que eu a considere como uma das músicas mais admiráveis dentro da carreira da banda.
“View from Nihil (Part II)” é uma espécie de “outro” que utiliza novamente o riff do final do EP anterior (reconectado no início deste álbum). Com pouco mais de um minuto de duração, Maniac fala “and I… I have made war” (traduzido como “e eu… eu fiz guerra”) quando então há um barulho de explosão, cessando a música (e também encerrando uma era).
PARTE III
O lado B inicia com “A Bloodsword and a Colder Sun (Part I)”, uma introdução de exatamente 33 segundos onde Maniac fala sussurrando que, com a explosão, surge um novo mundo onde não há mais a influência religiosa (talvez existindo apenas o plano mental).
É uma nova era também para o Mayhem: a partir desse momento, as referências e tradições do passado não mais precisam ser respeitadas, libertando-os para tomar qualquer direção.
“A Bloodsword and a Colder Sun (Part II)” é prova cabal dessa afirmação pois, pela primeira vez na história da banda, surge uma batida eletrônica que desenvolve uma música ambiente, misturando elementos de trip hop e vocais sussurrados, gerando assim uma atmosfera sombria.
“Crystalized Pain in Deconstruction” traz outros elementos como uma narração com tom de indiferença, mudanças abruptas de tempo, vocais robóticos e guitarras esquisitas.
“Completion in Science of Agony (Part I)”, a mais longa do álbum, apresenta maior cadência e utiliza características de metal progressivo, tornando a faixa mais interessante do lado B. Nela há também a participação de Øyvind Hægeland (Spiral Architect e Manitou) nos vocais e Tore Ylwizaker (Ulver) nos efeitos e ruídos.
“To Daimonion (Part I)” é uma música mais voltada ao rock, com vocais melancólicos influenciados talvez pelo goth rock dos anos 80.
“(Part II)” contém apenas a frase “I remember the future, a new beginning of time” (traduzido como “eu me lembro do futuro, um novo começo de tempo”), seguida de mais de 4 minutos de puro silêncio, enquanto, “(Part III)” é apenas um intervalo de 7 segundos de silêncio.
Ouvir essas duas faixas em vinil causa uma certa diferença, pois é possível ouvir o raspar da agulha no disco, gerando um leve ruído, o que pode se tornar algo interessante (para alguns).
“Completion in Science of Agony (Part II)” encerra o álbum com duas frases – sendo que uma delas também remete à “Symbols of Bloodswords” – sobrepostas a uma base instrumental interessante.
Percepções e curiosidades
A versão em CD contém uma faixa bônus escondida: para acessá-la, é preciso dar o play na primeira faixa e retroceder cerca de 2 minutos. Esse recurso funciona apenas em alguns CD players, mas para que os fãs pudessem ouvir, a banda disponibilizou essa introdução para download digital no site oficial durante a época de lançamento do álbum.
No ano de 2018, o álbum foi relançado com uma capa diferente, sendo completamente remixado e remasterizado. Embora a produção da master original ser cristalina, o relançamento apresenta guitarras com timbres mais quentes, o baixo está mais presente e a bateria tem mais dinâmica, propiciando um som mais agradável.
Jaime Gomez Arellano, produtor responsável pela remixagem e remasterização dessa nova versão do disco, comenta no encarte que Hellhammer gravou com uma bateria eletrônica Roland V-Drum utilizando pratos de verdade. Portanto houve um grande trabalho de substituição e soma de samples de bateria: o objetivo era fazer com que o instrumento soasse o mais real possível.
A capa original apresenta uma pomba presa em arame farpado: a primeira vista a imagem poderia ser interpretada como o símbolo da paz morrendo, ou seja, o início de uma guerra.
No entanto, a pomba aparece no cristianismo como representação do espírito santo e no judaísmo como símbolo da alma do ser humano e também como símbolo do povo de Israel, portanto é possível dizer que Mayhem declara guerra à tradição judaico-cristã e, também, contra o ser humano.
A capa do relançamento mostra Jesus Cristo segurando uma pomba e apontando com uma das mãos para uma sequência de 16 números.
“Grand Declaration of War” pode ser descrito como um álbum de metal avant-garde, diferente de qualquer outro álbum de Black Metal lançado até então. Por se tratar de um álbum conceitual, há uma narrativa que percorre toda a obra, fazendo com que todas as faixas se conectem e, portanto, ouvir as músicas separadamente pode não fazer muito sentido.
Alguns elementos podem causar desconforto para fãs ortodoxos, especialmente os vocais narrados e a construção enigmática das músicas. Guitarras estranhas, passagens dissonantes, mudanças rítmicas e o experimentalismo provocam o ouvinte. Isso é mais uma evidência de que a banda tenta não se repetir, lançando álbuns enigmáticos e distintos entre si, que eventualmente quebram as expectativas dos fãs.
O disco poderia muito bem ser transformado numa instalação interativa em algum museu de arte moderna, sincronizando imagens com as letras das músicas… resta saber se as pessoas estariam dispostas a enfrentar os 46 minutos de duração (70 minutos se incluirmos o EP “Wolf’s Lair Abyss”) nesse suposto ambiente para tentar entendê-lo como obra de arte.
Ouça o álbum na íntegra e deixe sua opinião nos comentários…
Referências
RUSSELL, Jeffery Burton. Lucifer: The Devil in the Middle Ages. Cornell University Press. 1984.
Essa é a primeira resenha estudada à fundo e sensata que leio sobre este disco, porque também demorei meses ela entender ele… Pessoal zoava, dizia que era rap, ahahaha… Mas pela primeira vez entendo o conceito dele, sendo que muitos também odeiam o ordo ad chao, mas eu o acho um disco espetacular!.. vou pegar ele inclusive aqui no site ?.. não sabia nem um pouco que o Mayhem havia feito um álbum conceitual e esta resenha me fez reouvir ele neste exato segundo com mais atenção ainda !.. Que esta seja a segunda de muitas maravilhosas resenhas como esta, explicativas como o conjunto da obra, não somente a parte musical.. ???
Obrigado pelas palavras, irmão!!! Realmente não é um álbum “fácil”, mas tentando entender como uma obra conceitual, nos faz ter mais interesse em ouvir com atenção. Valeu pelo comentário…
Parabéns pelo texto, Tersis! Você é ótimo, o álbum também <3
Obrigado pelo comentário, vamos ouvir então! <3
Texto muito bem elaborado! Parabéns!
Para quem nao conhece o material fica mais interessante ouvir em todos os formatos mencionados!
Un abrazo!
Obrigado François! Dá uma conferida no remaster, mesmo que em formato digital, caso não tenha ouvido ainda… =)
Parabèns pelo texto e a profundidade nos minímos detalhes !!!
Obrigado Walter… em breve devo seguir com os textos
É o único Lp que nunca fiz questão em ter. Porém a resenha está de alta qualidade, meus parabéns!
Obrigado Rodrigo!
Acompanhar o disco lendo esse texto, foi sensacional!
Legal propiciar uma nova experiência com o álbum, fico contente em saber. Obrigado =)
Fenomenal cara me fez ver este álbum com outros olhos pode ter certeza, hj em dia acho um puta álbum…
Que bom saber disso, muito obrigado pelo comentário.