Essa é a terceira parte da série onde conto minha relação com os lançamentos da banda Mayhem a partir de 1995 e após a reformulação da banda. Dessa vez, falo do álbum “Chimera”. Se você ainda não leu as primeiras partes, sugiro que confira também:
Após o lançamento de “Grand Declaration of War” em 2000, os fãs se encontravam numa dualidade:
- um grupo simplesmente odiou o álbum, perdendo assim o interesse pelos futuros lançamentos da banda;
- outra parcela de fãs aguardava ansiosamente pelo novo álbum, com uma grande incerteza de qual seria o direcionamento musical dessa vez.
Meu primeiro contato com o “Chimera” foi pelo website oficial da banda. No ano de 2004, foi divulgada uma notícia sobre o novo álbum. E, algum tempo depois, liberaram a faixa “You Must Fall” para download.
A minha primeira impressão foi a de que se tratava de um retorno à sonoridade mais sombria, já explorada pelo Mayhem, adicionando brutalidade e deixando a produção não tão limpa quanto no álbum anterior.
Logo em seguida, consegui uma versão limitada em digipack e pude apreciar o disco na íntegra.
“Chimera” é o álbum mais brutal da discografia da banda. Era exatamente o que eles precisavam lançar na época: uma fusão entre os padrões criados em “Wolf’s Lair Abyss” e “Grand Declaration of War”, junto da essência da escuridão presentes no grandioso “De Mysteriis Dom Sathanas”. O álbum ainda tem a brutalidade da nova década numa produção possível de distinguir todos os elementos e instrumentos na música.
Quanto à performance individual dos músicos, é perceptível uma grande mudança em Maniac. Ao invés dos experimentalismos e narrações presentes em “Grand Declaration of War”, o que percebemos em “Chimera” é um gutural com registro mais grave, ao invés de incessantes gritos agudos – embora ainda use seu vocal estridente em alguns momentos.
As letras são mais obscuras, desvencilhando-se do conceito reto de destruição do judeo-cristianismo e da humanidade. Agora, abordam uma visão mais profunda e misteriosa de morte:
- 6 das 8 músicas contém a palavra “morte” nas letras,
- enquanto as 2 outras faixas (e mais algumas) contém a palavra “vida”.
Porém, é possível perceber que não se trata de um antagonismo. Ao invés de criar comparações entre esses dois estados, há aqui uma tentativa de remoção da existência, demonstrando que não somos nada. E, ainda, que todas as possibilidades mundanas se esvaem em direção a um único caminho… o da morte.
Dessa vez, o baixo de Necrobutcher está muito mais presente. Além de acompanhar a guitarra em uníssono, há trechos em que o instrumento se destaca bastante (como em “Dark Night of the Soul” e “Impious Devious Leper Lord”).
Um dos grandes destaques do álbum são as linhas de guitarra de Blasphemer, que criou riffs complexos, precisos e, ao mesmo tempo, sombrios. As bases normalmente utilizam muito tremolo e acordes dissonantes. Em alguns casos há uso de mudanças rítmicas síncronas com a bateria, gerando uma atmosfera densa e também energética.
Outro grande destaque é a bateria matadora de Hellhammer, demonstrando destreza, resistência e técnica. As músicas utilizam padrões extremamente rápidos, tocados por longos períodos de tempo e com muita precisão.
Penso que o fato do músico ter se envolvido em inúmeros projetos depois do lançamento de “De Mysteriis Dom Sathanas” em 1994, fez com que ele estudasse música mais a fundo e, posteriormente, aplicasse esses conceitos também no Mayhem.
Lembro especificamente de um grande álbum lançado em 1996, com uma evolução notável na linguagem musical do baterista: “Aspera Hiems Symfonia” do Arcturus.
Durante uma rápida conversa que tive pessoalmente com ele, pude contar sobre a primeira vez que ouvi esse álbum em CD e vou contar agora para vocês. Veja só:
Eu estava deitado no escuro com fones de ouvido, e fiquei impressionado com o disco! Principalmente com as linhas de bateria e as melodias de guitarra.
Assim que o álbum terminou, dei play novamente. Dessa vez, tentei focar minha atenção apenas na bateria, como se eu estivesse controlando a mixagem do álbum, isolando todos os outros canais de instrumentos, e ouvindo apenas as frases e padrões rítmicos de Hellhammer.
É possível notar derivações de ideias utilizadas em algumas bandas que ele tocou até aquela época, como Age of Silence, Arcturus e Winds, por exemplo, sendo muito bem adaptadas para algumas músicas do Mayhem em “Grand Declaration of War” e, também, em “Chimera”.
CHIMERA FAIXA A FAIXA
“Whore” foi uma excelente opção para a faixa de abertura. Começa de forma visceral em uníssono e depois vem uma pequena pausa, onde há um acorde dissonante de guitarra sobrando (esse recurso se repete também no final). Além disso, as acentuações no cymbal lembra-nos do EP “Wolf’s Lair Abyss”.
O início de “Dark Night of the Soul” traz uma guitarra lenta, que se estende por toda a música, tendo diversas variações rítmicas. Há destaque para Necrobutcher numa passagem apenas com vocal, baixo e bateria. Mudanças de tempo, acentuações e pausas tornam as passagens lentas mais complexas, chamando a atenção do ouvinte. Na parte final há passagens mais rápidas (e que em alguns momentos aceleram mais ainda), criando uma dinâmica bem interessante na música.
“Rape Humanity with Pride” é minha faixa preferida. Inicia de forma brutal e com tempos complexos. Mantém o blast beat reto, acentuando junto com a guitarra numa precisão incrível. Há também camadas de melodias executadas na guitarra, sobrepondo o caos e impetuosidade instrumental do fundo. Em alguns momentos, Hellhammer aplica levadas com polirritmia, gerando contraste com as divisões rítmicas tocadas na guitarra e no baixo.
Na minha primeira audição do álbum, “My Death” foi uma das músicas que mais gostei. Traz gritos aterrorizantes e acordes com bend (recurso muito utilizado por bandas como Blut Aus Nord, Deathspell Omega e Ulcerate), criando uma atmosfera assustadora.
Embora sua cadência se estenda ao longo dos quase 6 minutos de música, há muitas mudanças e transições. Destaque também para o cântico presente no final da música: “odium humani generis”, citação de Tácito, que tinha aversão aos cristãos pelo “ódio ao gênero humano”.
Um bombardeio sonoro é criado em “You Must Fall”, com acentuação de tambores e sobreposição dos instrumentos de corda. As guitarras criam variações sobre a tônica do acorde, causando um efeito interessante.
Adiante, há também o uso de arpeggios sinistros (que não soam exagerados como algumas bandas de Brutal Death Metal utilizaram exaustivamente no início dos anos 2000). Mayhem produzia uma sonoridade considerada moderna, porém, mais uma vez, sem se igualar às características e padrões que estavam em evidência naquela época.
“Slaughter of Dreams” começa reta e violenta, com variações de acentuações mudando a fórmula dos compassos (recurso muito explorado nos álbuns seguintes como “Ordo Ad Chao”, “Daemon” e especialmente, em “Esoteric Warfare”). Há um momento em que o timbre da bateria muda com o uso de caixa e tambores de bateria microfonados ao natural, se diferenciando do som de trigger presente em todo o álbum.
“Impious Devious Leper Lord” inicia com uma levada de baixo e bateria, que fica ainda mais interessante com a entrada das guitarras no riff seguinte. Algumas partes da música me lembram o EP “Satanic Art” e o álbum “666 International”, ambos do Dødheimsgard. Compare as linhas e guitarra nos 02:15 min e, principalmente, nos 05:20 min dessa faixa com os 01:12 min da música “Carpet Bombing” do Dødheimsgard!
Por fim, o álbum chega à faixa título. O riff inicial é marcante, mais uma música que merece destaque. Variações de acentuação e tempo geram um interesse maior na introdução da música. A atmosfera é interrompida por um pequeno interlúdio de violão. A música tem andamento controlado em quase sua totalidade, abrindo espaço para uma rápida inserção de blast beats. Assim, retorna para a cadência inicial da faixa e prepara também o ouvinte para o encerramento do álbum.
Percepções e curiosidades
Se analisarmos o contexto da época, várias bandas buscavam mudar seu direcionamento. Perceba:
- Darkthrone trazia uma influência de crust/punk em “Hate Them” (2003) e “Sardonic Wrath” (2004);
- Dimmu Borgir inseria mais elementos sinfônicos em “Death Cult Armageddon” (2003), utilizando também trechos gravados com a Orquestra Filarmônica de Praga;
- Emperor buscava características de Death Metal como riffs atonais e afinação baixa em “Prometheus – The Discipline of Fire & Demise” (2001);
- Arcturus e Enslaved buscavam cada vez mais o lado progressivo em “The Sham Mirrors” (2002) e “Below the Lights” (2003), respectivamente.
A parte gráfica também não é muito convencional para as bandas de Black Metal da época. A arte da capa traz uma cena do filme de horror mudo sueco-dinamarquês “Häxan: A Feitiçaria Através dos Tempos”, lançado em 1922.
Nesse sentido, o Mayhem buscou ir contra o fluxo novamente. Chimera é um álbum único que mescla blast beats incansáveis, riffs doentios e, vez ou outra, utilizam palm mutes nas bases. Isso confere o peso do Death Metal, em certos momentos, sem se afastar de sua aura Black Metal.
Sob licença da Season of Mist, esse álbum está sendo relançado pela Mindscrape Music. Clique aqui e aproveite para adquirir sua cópia.
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Eu li as três partes. E só posso parabenizá-lo pelo trabalho impecável ao escrever as resenhas, as mesmas ficaram incríveis, bem detalhadas, didáticas, e com muitas curiosidades, muitas eu não sabia, e agora estou sabendo depois dessa leitura. E quanto aos trabalhos que foram analisados, que por sinal teve uma análise altamente precisa, eles são excelentes. O Mayhem ao decorrer de sua carreira mudou um pouco a sua sonoridade, assim como diversas outras bandas de Black Metal também, mas o grupo norueguês nunca se distanciou da sua proposta inicial, e sempre manteve aquela áurea sombria em suas músicas, composições com atmosferas caóticas, sombrias, e obscuras. O seu som sempre nos mostrou tanto o seu lado com uma extrema agressividade, quanto também com suas passagens inserindo bastante técnica, melodias únicas, riffs marcantes e característicos que só a banda sabe fazer, algo único e incrível.